[#Recuperação] Aquilo que ninguém diz sobre a recuperação de um distúrbio alimentar
11.5.20Recuperar, do que quer que seja, é um processo longo, demorado, muitas vezes ingrato, solitário e doloroso. É também um processo individual, em que cada pessoa pode viver e experimentar coisas totalmente diferentes para chegar ao mesmo fim.
No entanto, a recuperação – particularmente de um distúrbio alimentar que é o que me diz mais – tende a ser romantizada, principalmente nas redes sociais. Em particular em Portugal, poucos são os recursos oficiais que se focam na recuperação de distúrbios alimentares, e os que existem dizem pouco ou nada acerca do que realmente pode acontecer.
Tendo
isto em mente, e considerando aquilo que vivi e que estou a viver, decidi
despir-me de cor-de-rosa e mundos de fantasia e partilhar algumas verdades nuas
e cruas sobre esta que tem sido a maior e mais difícil aventura da minha vida.
Algumas destas verdades foram duras de aceitar, e muitas vezes são duras de serem
ditas. Mas alguém tem de as dizer.
O teu corpo vai mudar.
Sim, o
teu corpo vai mudar. Mas não vai insuflar, como provavelmente estás a pensar.
Vais inchar. A regulação da temperatura vai mudar – vais ter alturas com muito
calor, outras com muito frio, e isso vai acontecer de forma aleatória. Vais suar, vais ter gases, vais ter dores de barriga e não só. Vais
sentir-te muito cansada – muito mais do que te sentias antes de recuperares
peso. Vais dormir mais (e melhor!). Vais perder aquelas pilosidades que o teu
corpo criou para te proteger do frio, pois não tinhas gordura no corpo para te
aquecer. O teu cabelo e a tua pele vão começar a brilhar. Os teus ossos e músculos
vão ficar mais fortes novamente. O teu corpo vai ganhar vida.
É inevitável
que o teu corpo comece a ocupar mais espaço. Vais ganhar formas, vais ganhar
curvas. Mas pensa comigo: se o teu corpo está em carência nutricional, já a usar
o teu tecido muscular e ósseo para te manter viva, será que tudo aquilo que
estás a comer se vai transformar em gordura? Não! Claro que não! Primeiro vai
reparar todos os tecidos que estavam danificados, e só depois vai reconstruir
as tuas reservas de energia. Não vais engordar, vais normalizar!
Vais ter muita fome.
Muita.
Mesmo. E vão haver alturas que não tens fome mas vais acabar a comer, e muito. Na verdade, se estas a recuperar de um distúrbio alimentar, a sensação
de fome e saciedade estão todas trocadas. No meu caso, depois de mais de 15kg
ganhos, ainda tenho dificuldade em perceber os meus sinais de fome e saciedade.
Pior ainda? A doença ensinou-nos que o sinal de “saciedade” é um sinal de
perigo, e a “fome” é controlo e segurança. Sentirmo-nos saciadas assusta. Causa
pânico. Culpa. Mas só e apenas porque nós aprendemos essa relação. Enquanto não
quebrarmos este ciclo, não vamos deixar de sentir fome, não vamos deixar de
ceder à fome e, principalmente, não vamos deixar de sentir culpa depois de
comer.
Pior que isto, vão apetecer coisas bem calóricas, o que contribui para aumentar o medo e a culpa. Lembro-me perfeitamente que houve uma semana que devorei quase 1kg de nutella…. Senti-me horrível, desmotivada, gorda. Mas sempre que começava, não conseguia parar. O meu corpo implorava por calorias, e eu, quando provava a primeira colherada, não conseguia parar as seguintes. E depois sentia-me miserável. Nessa mesma semana fui ao médico pesar-me. Resultado? Ganhei 200gr que podiam ser da água que bebi antes. O corpo é esperto.
Conselhos? Não servem de nada
Esta é
provavelmente a coisa mais cruel que vou dizer. Qualquer pessoa que passa por
um distúrbio alimentar vai-se sentir incompreendido. E é verdade. Qualquer
pessoa dita normal não percebe porque é que alguém decide, consciente e
deliberadamente, parar de comer. Mas a verdade é que mesmo que compreendessem,
de nada servia. Porquê? Porque não importa o que te digam, não importa que te
dêem o melhor conselho do mundo, pois se tu não quiseres mudar, não vais mudar.
Alterar o comportamento tem de vir de dentro de nós e não de fora. Somos nós que temos de descobrir o porquê de querermos melhorar. Somos nós que temos de decidir que chega. Os médicos, psicoterapeutas, amigos, família… até o papa se fosse preciso, podem dizer tudo aquilo que quiserem, com toda a razão do mundo, que tu não irás ouvir. Dizer que aceitas o conselho, quando na verdade te entrou por um ouvido e saiu por outro, é enganares-te a ti própria. A mudança começa em ti, por ti, e a única motivação que vais ter és tu própria. Tu é que decides. Tens o poder nas tuas mãos.
Vais reaprender a sentir emoções.
No meu
caso, a anorexia levou-me a que eu deixasse de sentir o que quer que fosse. Não
estava triste, nem feliz. Apenas estava. Neutra, dormente, passiva. Existia
apenas. A única variação de humor que eu tinha era passar dessa neutralidade
para uma irritação incontrolável. A verdade é que tudo isto é causado pela
falta de nutrientes. O nosso cérebro está programado para isso mesmo. Não
podemos viver em pleno quando estamos com fome.
É de esperar que, à medida que vais recuperando, vais começando a sentir mais coisas – a alegria, a tristeza, a ansiedade e o medo, o amor, a curiosidade… enfim. O problema é que muitas vezes estamos tão habituadas aquela neutralidade e insensibilidade às emoções que gerir todas estas “novidades” pode ser difícil. Não te assustes. É tudo uma questão de reaprender a sentir, e adaptares-te a uma nova realidade. A verdade é que um mundo sem emoções é um mundo sem cor.
Vais sentir-te aborrecida
Esta é
uma das coisas com que eu mais sofro. O tédio. Porquê? Porque, caso não te
tenhas apercebido ainda (o que é muito natural caso estejas a viver um distúrbio
alimentar), a tua vida resume-se a duas coisas: Pensar na comida que queres
comer, e pensar em como não comer essa comida ou como a eliminar, caso a tenhas
comido. E assim passas os dias, semanas, meses, e até anos. Mesmo quando te
focas noutra coisa qualquer, a tua concentração dissipa-se facilmente e voltas
a entrar no mesmo ciclo de pensamentos cujo personagem principal é sempre o mesmo: a
comida.
A questão central aqui é que,
quando começas a recuperar, estes pensamentos começam a ocupar muito menos
espaço na tua mente e na tua vida. Isto é um campo perigoso pois a tendência é
que este vazio de pensamentos, este aborrecimento, chamemos-lhe assim, pode dar
espaço a que toda a recuperação volte atrás e por isso é importante termos
muito cuidado. O tédio, quando bem usado, é excelente para estimular a criatividade.
Aproveita esses períodos para criares algo que te ocupe e te encha de orgulho!
Vais ter medo
Ninguém
disse que recuperar era fácil. Não é. Não é no inicio, não é no meio, não é no
fim. E quando pensares que já estás bem, não te enganes: essa é provavelmente a
zona mais perigosa da recuperação. Vai chegar uma altura, quando recuperares o
teu peso, que te vais aperceber de varias coisas. Primeiro, o peso sobe… mas a
fome não para. Isto é logo um sinal de alerta para a tua parte doente te tentar
fazer andar para trás! A verdade é que a fome não para porque o teu corpo ainda
está em estado de alerta relativamente à carência alimentar, e como tal, vai
continuar a enviar sinais de fome, mesmo quando tu achas que não deveria estar
a enviar.
Depois,
vais ter de reaprender a viver com o teu novo corpo. As roupas vão deixar de
servir. As tuas coxas já não cabem entre as tuas mãos, as tuas costelas já não
estão salientes… ver isto tudo é, digamos, um grande gatilho. Há muito espaço
para recaídas, mas não há tempo para voltar para trás! Lembra-te do trabalho
todo que tiveste até aqui! Pega nas roupas que não te servem e doa, agradece as
tuas pernas por serem capazes de te levar para onde queres ir, agradece ao teu corpo
por nunca ter desistido de ti quando tu desististe dele. Não. Voltes. Para.
Trás.
As pessoas não vão ter as tuas emoções em consideração
Enquanto
que, por um lado, toda a tua família e amigos irão ficar extremamente felizes
com a tua recuperação, eles não vão saber como o manifestar. A felicidade deles
retira-lhes o filtro e vão esquecer-se de que estás numa situação instável a nível
emocional. Não se vão conter nem filtrar ao manifestar o quão melhor estás. Não
vão pensar que alguns comentários que tecem podem ter o efeito contrário que o
pretendido. Mas não é por mal – eles apenas não percebem.
A tua
avó provavelmente vai dizer, com o maior sorriso do mundo “Estás mais gordinha”.
A minha avó disse-me isto e, apesar de eu estar mais que preparada para isto e
saber que esta é a forma das pessoas mais velhas elogiarem e dizerem que estamos
com bom ar, a palavra “gordinha” atingiu-me como um estalo na cara bem dado. E
durante uns dias não consegui parar de pensar nisso. A palavra, dita com a
melhor intenção do mundo, doeu-me como um punhal cravado no peito. Mas a vida
continua. Não posso deixar uma palavra destruir aquilo que conquistei. Foca-te
na intenção e não nas palavras verbalizadas e tudo ficará mais fácil.
Para terminar…
Recuperar é cruel. É correr uma maratona… em que o chão está a arder… e os espectadores estão a atirar facas para a pista. Vão haver muitos dias em que te questionas se vale a pena. Vão haver dias em que te apetece desistir e regressar ao “conforto” da doença.
Mas
mantém na tua mente o percurso que fizeste, o esforço que fizeste para chegares
onde estás. Lembra-te do porquê! E não desistas!
21 comentários
Situações complicadas e difíceis de resolver...é preciso muita força de vontade!
ResponderEliminarIsabel Sá
Brilhos da Moda
É mesmo... Mas uma vez encarrilado, as coisas começam a fluir.
EliminarObrigada! Um beijinho *
Oh minha linda! Mas que post mais lindo... Muito obrigada por teres tido coragem de escrever tudo o que era preciso ser dito! Devo dizer que estou tão orgulhosa de ti! Tal como dizes, só quem passa por elas é que sabe, por isso só te posso desejar o melhor do mundo <3
ResponderEliminarQue continues com garra e não desistas de ti! És linda *
Um beijinho*
Muito obrigada de coração! Senti-me muito sozinha e sem informação durante o meu proprio processo e então achei que, se partilhasse um pouco, poderia ajudar alguem.
EliminarMuito obrigada pela força! Um beijinho gigante <3
A minha irmã passou por isso, portanto vivi as coisas de perto. É preciso muita força! <3
ResponderEliminarUm beijinho,
http://myheartaintabrain.blogspot.com/
É dificil tanto para quem passa, como para quem está à volta... Espero que a tua irmã já esteja recuperada!
EliminarUm grande beijinho! Obrigada *
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarÉs uma guerreira ❤️ muita força na tua jornada ����
ResponderEliminarUm grande beijinho ��
Tixa Soares
Muito obrigada minha querida! De coração <3
EliminarOlá! Gostamos muito do post. Bastante completo e trás a verdade ao de cima. Aligeirar as coisas pintando de cor-de-rosa e unicórnios nem sempre ajuda. Nunca passei por este problema em específico, mas se passasse tenho a certeza que este texto me ia dar a força necessária para não desistir. Muita força, que tudo corra bem. Beijinho
ResponderEliminarMuito obrigada pelas palavras! Realmente não é uma situação fácil, tal como muitas outras. Por vezes também é necessário um "balde de realidade" para nos ajudar a avançar!
EliminarUm beijinho *
um post mt bonito com grandes verdades que nos deixa a pensar parabens bjs saude
ResponderEliminarMuito obrigada querida!
EliminarMuitos beijinhos *
São realmente situações muito complicadas e só quem passa por elas é que sabe como é!
ResponderEliminarBjxxx
Ontem é só Memória | Facebook | Instagram | Youtube
É verdade, é dificil perceber sem se passar por isso. Muito obrigada pelas palavras!
EliminarUm beijinho *
Patty,
ResponderEliminarParabéns pela coragem de expor.
Não estás só a ajudar outras pessoas mas principalmente a ti. Ao colocares no "papel" os teus sentimentos e vivências estás a demonstrar que os assimilaste. Se algum dia te sentires quebrar, vem aqui e lê em voz alta...
Vale sempre a pena! Nunca desistas!
Força!
Beijinhos
Liliana
Querida Liliana!
EliminarAntes de mais um obrigada do fundo do coração pelas palavras doces e de força! E tens toda a razão. Muitos destes textos que escrevi e decidi partilhar sobre a minha recuperação, escrevi-os principalmente para me auto-motivar! Se conseguir ajudar mais alguem, melhor ainda!
E podes crer que reler ajuda mesmo muito!
Mais uma vez, muito obrigada!
Um beijinho enorme*
Olá, Patty!
ResponderEliminarBem gostaria que me dizessem "Estás mais gordinha". Por motivos de saúde, não consigo engordar embora coma muito… :(
Por isso… "Estás com sorte" hehehe
Um beijinho
Http://tudosoblinhas.blogspot.com
Já eu fico triste por me dizerem isso... Realmente as mentes das pessoas estão tramadas.
EliminarE fico triste por saber isso :( Ainda assim espero que estejas bem!
Um beijinho *
muitos parabéns por teres conseguido abordar um tema tão complicado e pessoal de uma forma tão genuína e delicada. vi de perto o meu irmão mais novo a passar pelo início de uma anorexia nervosa e não foi bonito. espero que tudo corra bem
ResponderEliminarInfelizmente não há muita gente a abordar este tema, por vergonha, medo ou outra razão qualquer e, como tu própria (infelizmente) pudeste presenciar, é uma situação muito dificil... Espero que as coisas por aí também estejam bem :)
EliminarUm beijinho e obrigada *